Como todos sabemos, advogar não é tarefa para fracos. Dalmo de Abreu Dallari, jurista e professor que recentemente partiu, nos deixou um imenso legado em defesa da democracia e dos direitos humanos..
Ele costumeiramente reafirmava a frase do Ruy Barbosa de “a força do direito deve superar o direito da força.”
Contribuiu para o fim do período da ditadura militar, compondo a Comissão de Justiça e Paz da Diocese de São Paulo. Sua força, especialmente nesse período de frequentes agressões à democracia, faz e continuará fazendo imensa falta.
Falando em direito da força, quero compartilhar com os leitores, a grande maioria colegas de advocacia, uma conversa que tive no final dos anos oitenta com uma cliente, que naquela época já era septuagenária.
Dona Neide, vamos adotar esse nome para quem provavelmente não está mais entre nós (estaria com mais de cento e dez anos, se viva fosse) apenas para evitar que vizinhos ou parentes possam identificá-la. Ah, ela era uma presença marcante. Foi cliente de alguns prestigiosos e famosos advogados, mas não era muito fácil se relacionar com ela.
Na época em que eu trabalhei no Cartório da Terceira Vara Cível de Santos, que estava sob a direção do saudoso Olegário, ela costumava ficar sentada e conversava longamente com o paciente e tolerante chefe do cartório. Usava bobs ao estilo Dona Florinda dos episódios de “Chaves”, do comediante mexicano Roberto Bolaños. Eu não imaginava que a tornaria a encontrar no escritório de advocacia que passei a trabalhar. Por exaustão, deixei a serventia para iniciar a advocacia e lá a atendi algumas vezes.
Ela tinha um bom contato de negócios com um dos sócios e numa dessas ocasiões ela me pediu para inserir cláusulas leoninas nos contratos de locação já assinados. Evidentemente, por questões ético-morais, não pude concordar com aquele comportamento, mas para não violar o sigilo cliente/advogado também estava impedido de denunciar à polícia que ela faria aquilo apesar da minha objeção.
Esse comportamento, isoladamente considerado, com toda a certeza não exemplifica exatamente o chamado uso do “direito da força”. O seu uso as vezes se veste de pretensa legalidade. Explico:
Na conversa que mencionei, ela me contava muito orgulhosa a respeito dos métodos em que conseguia expulsar inquilinos de seus imóveis, usando estratégias nada convencionais e muito menos respeitosas a direitos humanos básicos. Usava todo tipo de boicote: alugava por noventa dias para reajustar o aluguel em curto espaço de tempo (sem que o inquilino soubesse disso). Fazia qualquer negócio para burlar o congelamento estabelecido no Plano Sarney. Adotava também umas estratégias que achei bastante criativas, mas alerto para os que queiram aproveitar as ideias, que tais atos podem caracterizar dano moral (que naquela época era difícil caracterizar e mais difícil ainda uma condenação) mas que hoje, pode gerar sérios problemas aos aventureiros.
Feitas as ressalvas, vamos aos fatos: Ela, em certa ocasião, disse ao inquilino que queria reajustar o aluguel e ele, achando que o direito o estava protegendo, se negava a majorar a despesa, cujo valor atual lhe parecia justo. Inconformada ela aguardou que ele saísse para trabalhar. Ela sempre tinha as chaves dos imóveis que os inquilinos ou esqueciam ou não se preocupavam em trocar o segredo. Pegou uma garrafa pet e encheu de cimento e um pouco de água. Introduziu o artefato no vaso sanitário de modo que não pudesse ser vista por quem usasse o equipamento. O inquilino, coitado, bem que tentou chamar essas equipes de desentupimento.
Nada resolvia e nenhum encanador, mesmo retirando o vaso, conseguia entender o que estava acontecendo. Claro, ninguém consegue morar num local onde as necessidades básicas sequer podem ser satisfeitas sem provocar desumanos e humilhantes alagamentos. Com a mudança do inquilino indesejado e depois da substituição de parte do cano de saída do esgoto, ela finalmente pode ter satisfeita a sua vontade.
Em outra ocasião, ela notificou para que fosse substituído o telhado em 10 dias sob pena de ela mesma mandar executar a tarefa. Como o senso comum indica, a manutenção do telhado deve ser de responsabilidade do proprietário. Com o prazo escoado ela aguardou a saída do locatário e escolheu um dia bem chuvoso para iniciar o trabalho. Mandou tirar todas as telhas. Com a chegada do inquilino e a casa com móveis, eletrodomésticos e roupas molhados, ela afirmou ao desesperado morador que não podia recolocar as telhas porque a insistente chuva poderia pôr em risco a integridade dos trabalhadores.
Como vimos, o direito da força também pode ser usado por senhoras idosas com aparência de fragilidade.
Não se pode desprezar os ataques a direitos humanos básicos e fundamentais como o desrespeito à casa como asilo inviolável do indivíduo. Tal direito constitucionalmente previsto foi usualmente desprezado por agentes da repressão no período da ditadura militar.
Para nossa sorte homens valentes como Dalmo de Abreu Dallari arriscaram a própria vida para resistir contra tais violências, que levaram à invasão de casas, ao sequestro, prisão, tortura e morte de tantos brasileiros.
Lamentamos que algumas pessoas continuem insistindo em defender a ditadura.
Que ela e o querido Professor Dalmo descansem em paz.
José Carlos Fernandes
Advogado e Presidente da Comissão de Administração da Justiça da OABSV