Origem histórica da usucapião urbana – Desde os tempos pré-históricos os seres humanos exploram a natureza em busca de lugares para manter a sua habitação e segurança. Os homens das cavernas mantinham suas formas de defesa de seu local de moradia contra predadores e outros clãs que ameaçavam tomar a posição mais segura contra as intempéries, buscando sempre a sobrevivência.
Assim, desde às mais remotas eras, o homem exerce o seu domínio sobre a terra pela ocupação. Ao passar dos séculos, as terras que continham maiores riquezas naturais eram dominadas pelas comunidades mais fortes, enquanto as terras mais isoladas eram refúgio dos povos mais fracos, em conhecimento e também em poderio bélico.
Nas palavras de Moreira Alves (1996):
“Primitivamente, a ocupação é o mais importante dos modos de aquisição da propriedade, tanto que os jurisconsultos romanos salientavam que o direito de propriedade decorrera da ocupação. À medida, porém, que a civilização vai progredindo, a importância desse modo de aquisição da propriedade regride, porque o círculo das coisas sem dono cada vez mais se reduz.”
Isso porque, com o progresso da civilização e a diminuição dos espaços “não ocupados” (sem dono), passou-se à necessidade de regularizar em registros públicos a quem pertencia cada espaço de terra, evitando-se conflitos e a tolerância da obtenção da posse de forma violenta e injusta. Buscando regularizar tais espaços urbanos, surgiu um modo jurídico romano de tornar a ocupação (posse de fato), em propriedade legítima (registro público), denominando-se de “usucapio” (usus – usar; capio – pegar ou apropriar), que literalmente significa “tornar-se dono pelo uso”.
A Lei das XII Tábuas, foi a primeira fonte formal da usucapião a que se tem notícia ao estabelecer o direito de que: “Usus auctoritas fundi biennium est, ceterarum rerum omnium annus est usus”, ou seja, “a autoridade (propriedade) sobre uma coisa imóvel era adquirida em dois anos, e das coisas móveis em um ano de uso”.
Por esta regra, passados dois anos em que se estava ocupando um bem imóvel, sem qualquer notícia de reivindicação de quem quer que fosse, passava-se a ser proprietário do bem perante todos os cidadãos.
A usucapião no direito brasileiro: a função social da propriedade.
Tomando o modelo romano, que foi com o passar dos séculos disseminado entre os povos estrangeiros pela “longi temporis praescriptio” — prescrição aquisitiva em razão do decurso do tempo — o direito brasileiro incorporou pela primeira vez no Código Civil de Beviláqua, em 1.916, para fins de transformar-se a posse — (ocupação pacífica) de bens abandonados ou vendidos irregularmente —, em propriedade regularizada que pudesse cumprir sua função social de pagar impostos e servir utilmente à sociedade.
Temos as lições de Sílvio Rodrigues (1991), para quem:
“a usucapião dá prêmio a quem ocupa a terra, pondo-a a produzir. É verdade que o verdadeiro proprietário perdeu seu domínio, contra sua vontade. Mas, não é injusta a solução legal, porque o prejudicado concorre com sua desídia para a consumação de seu prejuízo. Em rigor, já vimos, o direito de propriedade é conferido ao homem para ser usado de acordo com o interesse social e, evidentemente, não o usa dessa maneira quem deixa sua terra ao abandono por longos anos”.
Isso porque a Constituição Federal de 1988, trouxe como direito e dever fundamental que a propriedade cumprisse a sua função social (art. 5º, inc. XXIII). Ninguém poderá, assim, amealhar propriedades sem o seu uso, sem sua regular vinculação econômica e social, conforme as diretrizes básicas gerais, impostas pela própria Constituição (art. 182, “caput” e § 2º), como adiante se analisará.
Com o Código Civil de 2002, alargou-se ainda mais a compreensão de que a usucapião serve à função social da propriedade, principalmente a imobiliária, vez que um dos pilares da nova sistemática civil desenvolvida sob a maestria de Miguel Reale é a “socialidade” e “concreção”, que sob o amparo da eticidade (boa-fé objetiva) devem conduzir os possuidores à obtenção da titularidade do bem imóvel, por render-lhe frutos não só para si próprio, mas para a coletividade.
Nos dizeres de Scavone Júnior (2016): “Não obstante certo grau de injustiça para alguns, (a usucapião) é uma realidade jurídica que também funciona como um dos meios de levar a efeito a função social da propriedade. De fato, corrige uma injustiça social ao penalizar o proprietário desidioso, que não concede à sua propriedade a necessária função social constitucionalmente requerida”.
Defende o eminente professor Flávio Tartuce:
“na era da codificação de 1916, Clóvis Beviláqua conceituava a propriedade como sendo o poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida física e moral (2003, v. I, p. 127) […] Ao antigo absolutismo do direito, consubstanciado no famoso jus utendi et abutendi, contrapõe-se, hoje, a socialização progressiva da propriedade – orientando-se pelo critério da utilidade social para maior e mais ampla proteção aos interesses e às necessidades comuns”.
Destarte, na atual sistemática do direito de propriedade, manter-se a propriedade sem o seu uso e sem aproveitamento social é inconstitucional. E a usucapião é o prêmio para aquele que dá à terra (à propriedade) a destinação social que lhe é imanente, pois ninguém nega a importância da terra para a soberania nacional, bem como para a economia interna do país.
Os benefícios da usucapião para o município e para o registro público imobiliário
Mas o que é isso: a função social da propriedade? — É a própria Constituição Federal que nos dá o conceito. A propriedade cumpre a sua função social quando atende às diretrizes do poder público para a utilização do solo urbano (art. 182, § 2º da CF/88).
Quem realmente usa e se beneficia de qualquer forma do bem imóvel, deve pagar os devidos impostos à municipalidade e tem o dever de manter o imóvel condizente com a política de urbanização local.
Assim, o proprietário de terreno baldio em área em pleno desenvolvimento ou o imóvel deteriorado e abandonado que gera proliferação de usuários de drogas, lixo e roedores, pode sofrer sanções administrativas constitucionais para que dê a função social, conservando, promovendo a manutenção do imóvel e pagando os devidos impostos (§ 4º e incisos do art. 182), sob pena de IPTU progressivo e desapropriação sanção.
Imediatamente, no art. 183, a Constituição Federal concede um prêmio para aquele particular que dê a imediata função social ao bem imóvel abandonado de até 250m²: a usucapião especial de 5 anos, para aquele que resida no local com sua família, ou seja, que esteja pagando os devidos impostos ao município, usando e promovendo a conservação do bem, e tenha apenas aquele lugar para sua moradia.
Com isso todos ganham. O município com a regularização da propriedade imobiliária poderá receber o imposto de propriedade urbana (IPTU) regularmente, e ainda receber o imposto de transmissão de bens imóveis (ITBI) quando o novo proprietário, que usucapiu o bem, for vendê-lo para outra pessoa pelas vias regulares (tabelionato de notas e registro de imóveis).
Nesta inteligência, o bem imóvel cumprindo sua função social terá ingressado no mercado imobiliário formal, que é interessante para que o município atualize os cadastros dos loteamentos urbanos regulares e aumente seu percentual de receita fiscal imobiliária, aplicando os recursos nos maiores interesses da coletividade: saúde pública, educação infanto-juvenil e demais serviços públicos.
De outro lado, o registro público imobiliário — muitas das vezes resistente às usucapiões que se fazem na circunscrição —, nada tem a perder com a regularização por meio deste instituto, pois assim quando regularizada a propriedade imobiliária poderá, atualizados seus registros com os atuais proprietários, receber seus emolumentos a partir nas novas compras e vendas levadas a efeito.
O imóvel tendo ingressado no mercado imobiliário regular, poderá ter seus incentivos para o interesse da rede bancária, para concessão de financiamentos e rendimentos pelos diversos programas habitacionais e investimentos que se utilizam de fundos imobiliários, que cada vez mais utilizados tendem a melhorar a concessão ode crédito imobiliário no país, gerando maior segurança interna.
Cediço, portanto, que, com a usucapião, a coletividade ganha, enquanto apenas quem perde é o ex-proprietário desidioso, ou aqueles que se beneficiam exclusiva e egoisticamente das vendas irregulares por contratos de gaveta para evitar o pagamento de custas, emolumentos e impostos, gerando caos econômico.
Olhemos, pois, para a usucapião urbana com novos olhos.
Olhos de incentivo, sabendo que com o cumprimento da função social da propriedade, pela usucapião, os benefícios recairão sobre a sociedade com um todo, para que um dia tenhamos mais imóveis regulares do que irregulares no Brasil, o que é uma realidade a ser mudada com o afinco da advocacia imobiliária.
Rafael de Jesus Dias dos Santos
Advogado e Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OABSV